"A Cidade e as Serras", Capítulos XV e XVI, de Eça de Queirós
Description
Capítulos XV e XVI (último capítulo), em audiolivro, do romance “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós.
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“A Cidade e as Serras” é um desenvolvimento do conto “Civilização”, cuja publicação em livro ocorreu em 1901, já depois da morte do autor. No romance é relatada a história de Jacinto, tendo como narrador José Fernandes, um amigo fraternal. Jacinto nasceu e viveu toda a sua vida num palácio dos Campos Elísios, em Paris. Apesar de rodeado de conhecimento, de tecnologia e de luxo, vive aborrecido e decide regressar a Tormes, na região do Douro.
TRANSCRIÇÃO
—
XV
E agora, entre roseiras que rebentam, e vinhas que se vindimam, já cinco anos passaram sobre Tormes e a Serra. O meu Príncipe já não é o último Jacinto, Jacinto ponto final — porque naquele solar que decaíra, correm agora, com soberba vida, uma gorda e vermelha Teresinha, minha afilhada, e um Jacintinho, senhor muito da minha amizade. É até monótono, pela perfeição da beleza moral, aquele homem tão pitoresco pela desinquietação filosófica e pelos pitorescos tormentos da fantasia insaciada. Quando ele agora, bom sabedor das coisas da lavoura, percorria comigo a quinta, em sólidas palestras agrícolas, prudentes e sem quimeras — eu quase lamentava esse outro Jacinto que colhia uma teoria em cada ramo de árvore e, riscando o ar com a bengala, planeava queijeiras de cristal e porcelana, para fabricar queijinhos que custariam cada um duzentos mil réis!
Também a paternidade lhe despertara a responsabilidade. Jacinto possuía agora um caderno de contas, ainda pequeno, rabiscado a lápis, com folhas, e papeluchos soltos entremeados, mas onde as suas despesas, as suas rendas se alinhavam, como duas hostes disciplinadas.
Visitara já as suas propriedades de Montemor, da Beira, a Avelã, e consertava, mobilava as velhas casas dessas propriedades para que os seus filhos, mais tarde, crescidos, encontrassem «ninhos feitos». Mas onde eu reconheci que definitivamente um perfeito e ditoso equilíbrio se estabelecera na alma do meu Príncipe, foi quando ele, já saído daquele primeiro e ardente fanatismo da Simplicidade — entreabriu a porta de Tormes à Civilização. Dois meses antes de nascer a Teresinha, uma tarde, entrou pela avenida de faias uma chiante e longa fila de carros, requisitados por toda a freguesia, e ajoujados de caixotes. Eram os famosos caixotes há um ano encalhados em Alba de Tormes, e que chegavam trazendo, para despejar a Cidade sobre a Serra. Eu pensei: «Mau! o meu pobre Jacinto teve uma recaída!» Mas os confortos mais complicados, que continha aquela caixotaria temerosa, foram, com surpresa minha, desviados para os sótãos imensos, para o pó da inutilidade: e o velho solar apenas se regalou com alguns tapetes sobre os seus soalhos, cortinas pelas janelas desabrigadas, e fundas poltronas, fundos sofás, para que os repousos, que ele imaginara, fossem mais lentos e suaves. Atribuí esta moderação a minha prima Joaninha, que amava Tormes na sua nudez rude. Ela jurou que assim o ordenara o seu Jacinto. Mas, decorridas semanas, tremi. Aparecera, vindo de Lisboa, um contramestre, com operários, e mais caixotes, para instalar um telefone!
— Um telefone, em Tormes, Jacinto?
O meu Príncipe explicou, com humildade:
— Para casa de meu sogro!… Bem vês.
Era razoável e carinhoso. O telefone porém, subtilmente, mudamente, estendeu outro longo fio, para Valverde. E Jacinto, alargando os braços, quase suplicante:
— Para casa do médico. Bem. Compreendes…
Era prudente. Mas, uma manhã, em Guiães, acordei aos berros da tia Vicência! Um homem chegara, misterioso, com outros, trazendo arame, para instalar na nossa casa o telefone. Calmei a tia Vicência, jurando que essa máquina nem fazia barulho, nem trazia doenças, nem atraía as trovoadas. Mas corri a Tormes. Jacinto sorriu, encolhendo os ombros:
— Que queres? Em Guiães está o boticário, está o carniceiro… E, depois, estás tu!
Era fraternal. Mas pensei: «Estamos perdidos! Dentro de um mês temos a pobre Joana a apertar o vestido por meio de uma máquina!» Pois não! O Progresso, que, à intimação de Jacinto, subira a Tormes a estabelecer aquela sua maravilha, pensando talvez que conquistara um reino novo para desfiar, desceu, silenciosamente, despedido, e não avistámos mais sobre a serra a hirta sombra cor de ferro e de fuligem. Então compreendi que, verdadeiramente, na alma de Jacinto se estabelecera o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura, de que tanto fora o Príncipe sem Principado. E uma tarde, no pomar, encontrando o nosso velho Grilo, agora reconciliado com a serra, desde que a serra lhe dera meninos para trazer às cavaleiras, — observei ao digno preto, que lia o seu «Figaro», armado de imensos óculos redondos:
— Pois, Grilo, agora realmente bem podemos dizer que o sr. D. Jacinto está firme.
O Grilo arredou os óculos para a testa, e levantando para o ar os cinco dedos em círculo como pétalas de uma túlipa:
— Sua Excelência brotou!
Profundo sempre o digno preto! Sim! Aquele ressequido galho de Cidade, plantado na Serra, pegara, chupara o húmus do torrão herdado, criara seiva, afundara raízes, engrossara de tronco, atirara ramos, rebentara em flores, forte, sereno, ditoso, benéfico, nobre, dando frutos, derramando sombra. E abrigados pela grande árvore, e por ela nutridos, cem casais em redor o bendiziam.
XVI
Muitas vezes, Jacinto, durante esses anos, falara com prazer num regresso de dois, três meses, ao 202, para mostrar Paris à prima Joaninha. E eu seria o companheiro fiel, para arquivar os espantos da minha serrana ante a Cidade! Mas depois conveio esperar que o Jacintinho completasse dois anos, para poder jornadear com conforto, e apontando já com o seu dedo para as coisas da Civilização. Mas quando ele, em Outubro, fez esses dois anos desejados, a prima Joaninha sentiu uma preguiça imensa, quase aterrada, do comboio, do estridor da Cidade, do 202, e dos seus esplendores. «Estamos aqui tão bem! Está um tempo tão lindo!» murmurava, deitando os braços, sempre deslumbrada, ao rijo pescoço do seu Jacinto; ele sacudia logo Paris, encantado. «Vamos para Abril, quando os castanheiros dos Campos Elísios estiverem em flor!» Mas em Abril vieram aqueles cansaços que imobilizavam a prima Joaninha no divã, ditosa, risonha, com umas pintas na pele, e o roupão mais solto. Por todo um longo ano estava desfeita a alegre aventura. Eu andava então sofrendo de desocupação. As chuvas de Março garantiam uma farta colheita. Uma certa Ana Vaqueira, corada e bem feita, viúva que sentia as necessidades do meu coração, partira com o irmão para o Brasil, onde ele dirigia uma venda. Desde o Inverno, sentia também no corpo como um começo de ferrugem, que o emperrava, e, certamente, algures, na minha alma, nascera uma pontinha de bolor. Depois a minha égua morreu… Parti eu para Paris.
Logo em Hendaya, apenas pisei a doce terra de França, o meu pensamento, como pombo a um velho pombal, voou ao 202, — decerto por eu ver um enorme cartaz em que uma mulher nua, com flores bacânticas nas tranças, se estorcia, segurando numa das mãos uma garrafa espumante, e brandindo na outra, para o anunciar ao Mundo, um novo modelo de saca-rolhas. E, oh surpresa!, eis que, logo adiante, na estação quieta e clara de Saint-Jean-de-Luz, um moço esbelto, de perfeita elegância, entra vivamente no meu compartimento, e, depois de me encarar, grita:
— Eh, Fernandes!
Marizac! O duque de Marizac! Era já o 202. Com que reconhecimento lhe sacudi a mão fina — por ele me ter reconhecido! E, atirando para o canto do vagão um paletó, um maço de jornais que o escudeiro lhe passara — o bom Marizac exclamava na mesma surpresa alegre:
— E Jacinto?
Contei Tormes, a serra, o seu primeiro amor pela Natureza, o seu outro grande amor por minha prima, e os dois filhos, que ele trazia às cavaleiras.
— Ah que canalha! — exclamou Marizac com os olhos espetados em mim. — É capaz de ser feliz!
— Espantosamente, loucamente… Qual! Não há advérbios…
— Indecentemente — murmurou Marizac muito sério. — Que canalha!
Eu então desejei saber do nosso rancho familiar do 202. Ele encolheu os ombros, acendendo a cigarette:
— Todo esse mundo circula…
— Madame d’Oriol?
— Continua.
— Os Trèves? O Efraim?
— Continuam, todos três.
Lançou um gesto lânguido.
— Em cinco anos, em Paris, tudo continua… As mulheres com um pouco mais de pós de arroz, e a pele um pouco mais mole, e melada. Os homens com um bocado mais de dispepsia. E tudo segue. Tivemos os Anarquistas. A princesa de Carman abalou com um acrobata do Circo de Inverno… E — et voilà!
— Dornan?
— Continua… Não o encontrei mais desde o 202… Mas vejo às vezes o nome dele, no «Boulevard», com versos preciosos, obscenidades muito apuradas, muito subtis.
— E o psicólogo?… Ora, como se chamava ele?…
— Continua também. Sempre com as feminices a três francos e cinquenta… Duquesas em camisa, almas nuas… Coisas que se vendem bem!
Mas quando eu, encantado, ia indagar de Todelle, do grão-duque, o comboio entrou na estação de Biarritz — e rapidamente, apanhando o paletó e os jornais, depois de me apertar a mão, o delicioso Marizac saltou pela portinhola, que o seu criado abrira, gritando:
— Até Paris!… Sempre Rue Cambon!
Então, no compartimento solitário, bocejei, com um